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terça-feira, dezembro 07, 2010

Johnny Mnemonic ou “A maldita civilização tecnológica”

por: Natália Abreu Damasceno 1


Roteirizado pelo autor americano de ficção-científica William Gibson, o longa-metragem Johnny Mnemonic foi lançado em 1995 por importantes estúdios de Hollywood. Orçado em cerca de 26 milhões de dólares, o primeiro filme dirigido pelo artista visual Robert Longo é baseado no conto homônimo de Gibson , porém possui elementos predominantes de outras obras do escritor, notadamente de Neuromancer (1984). A trama se situa num futuro apocalíptico da terceira década do século XXI, no qual o mundo é dominado por megacorporações e a informação é o principal commodity. Repleto de crítica social, cyborgs e convulsões tecnológicas, Johnny Mnemonic é o pesadelo do futuro sob a estética cyberpunk.

O filme conta a história de Johnny (Keanu Reeves), uma espécie de agente-correio de informações, que armazena dados num dispositivo de 80 gigabytes – um artefato que poderia ser estendido para 160gb - instalado no seu cérebro. Similar à função de um pen-drive, Johnny é incumbido de levar informações roubadas de uma corporação farmacêutica de Beijing para Newark. Essa última é uma região fictícia esteticamente semelhante aos subúrbios de Nova York, habitada pela escória da era digital e marcada pelo atraso tecnológico e amontoados de lixo low-tech. O conflito se inicia quando Johnny é informado que os dados a serem transportados ultrapassam a sua capacidade de armazenamento. Motivado para a realização dessa que seria sua última missão, o agente-correio deposita 360 gigabytes de dados, sobrecarga que pode lhe causar um colapso cerebral se não for descarregada em 24 horas.
O enredo se complica quando a Yakuza (a presença de elementos da cultura oriental é visível em toda a obra de Gibson) e outros mercenários, como o pregador psicopata Isaías, começam a perseguí-lo e a lutar pela sua cabeça, ou melhor, pelos dados nela contidos. Esse fator é o que sustenta a dinâmica da película, que através de divertidas cenas de perseguição e lutas violentas, envolvem o espectador no drama do protagonista. O clímax da obra é atingido quando Johnny descobre que os dados que carrega são a cura para uma doença letal chamada NAS (Nerve Attenuation Syndrome), transmitida por ondas eletromagnéticas à metade da população mundial. Nessa condição, o hacker se dá conta de que não só cabe a ele salvar a própria cabeça, como também a humanidade, fazendo com que essa cura há tempos escondida tenha o destino certo.
Apesar de todo o apelo futurístico e dramático típico das obras de Gibson, Johnny Mnemonic foi um fracasso nas bilheterias e nas críticas. As desaprovações acusavam desde a atuação de Keanu Reeves, que foi indicado ao prêmio Framboesa de pior ator, até o mau uso da linguagem tecnológica e a produção de cenas sem sentido. O fato é que em 1995 a internet ainda não tinha se popularizado o suficiente para que o público estivesse familiarizado com termos como download, ciberespaço e interface. Assim, a realidade digital cyberpunk criada pelo filme, repleta de implantes eletrônicos e aparelhos inusitados de acesso à internet (datagloves, capacetes de simulação virtual etc.) era muito bizarra e abstrata para um público que ainda engatinhava na web. Alguns críticos mais recentes acreditam que esse é o mal pelo qual passaria qualquer filme sobre cibercultura nessa década. Afinal, segundo Steve Napleton “se um filme não foi bem sucedido com um roteiro de William Gibson, um talentoso novo diretor e uma estrela do cinema [Keanu Reeves], então dificilmente outro filme sobre ciberespaço iria sair-se melhor.” (NAPLETON, 1996, tradução nossa).
Além disso, a película de Robert Longo apresenta uma contradição interna essencial. Trata-se de um roteiro que veicula uma estética decadente e uma crítica social à manipulação da informação, produzido e distribuído por estúdios de Hollywood. Deste modo, o próprio Gibson atribui o fracasso do filme aos cortes exigidos pela Sony Pictures Imageworks. Em entrevista a Bem Lincoln afirmou que “Ele [o filme] foi de uma obra muito engraçada e alternativa para algo que foi malogradamente cortado e transformado em algo mais mainstream” (GIBSON, 1998, tradução nossa). Esse conflito de interesses que comprometeu a história de alguns personagens e o caráter mais bem humorado e irônico do roteiro de Gibson é comum em obras cinematográficas. E cabe ao pesquisador que irá analisá-las estar atento aos “diferentes olhares sobre o social, que nem sempre se ajustam.” (ROSSINI, 2006, p. 115), já que, como vimos, essas tensões entre as instâncias de produção podem ser decisivas no resultado final do filme.
Para além de sua repercussão negativa, Johnny Mnemonic levanta pontos cruciais para pensarmos algumas visões sobre a cibercultura e sobre o futuro da era digital em que (já) vivemos. De fato, a perspectiva de William Gibson, que apresenta a tecnologia como agressora das funções físicas, subversora de valores e inversamente proporcional à humanidade possui seus exageros apocalípticos. No filme é anunciada a “maldita civilização tecnológica”. Nela, homens abrem mão de suas memórias de infância para a instalação de um dispositivo eletrônico de armazenamento de dados e os valores religiosos são subvertidos - como vemos através do pregador cristão Isaías, que mata para manter seu organismo artificial. Essa perspectiva não pode ser considerada um completo delírio do autor, mas também não é uma espécie de verdade inescapável e draconiana.
O surgimento de igrejas on-line e a afirmação cada vez maior do ciberespaço como principal “suporte de memória da humanidade” (LEVY, 1999, p.93) através de blogs, fóruns, periódicos e bibliotecas eletrônicas situa-nos numa perspectiva que se distancia dessa fatalidade. Tendo em vista esses aspectos das redes virtuais, nós não somos induzidos a afastar-nos de nossa subjetividade e essência humana. Pelo contrário, Pierre Levy (1999) observa como o ciberespaço se revela no século XXI como um local da autonomia, das novas formas de acesso à informação, da aprendizagem personalizada e do reconhecimento das coletividades humanas. Para o filósofo francês a rede mundial de computadores é democrática e potencializadora das relações entre os homens. Não substitui ou perverte tradições e valores, os incorpora e reformula. Não pensa por nós, apenas comunica e amplia as possibilidades de interação e contato. Para Levy, o virtual é uma extensão das nossas vidas que funciona sob outras regras.
Porém, mesmo encontrando nessas idéias de Levy um maior respaldo na nossa realidade cotidiana, há um lado obscuro da democracia e da liberdade proporcionada pela internet que de certa forma dialoga com Johnny Mnemonic. Sua capacidade potencializadora das relações e sua qualidade de instrumento privilegiado para organizar, informar e dominar, faz do ciberespaço um terreno disputado (CASTELLS, 2005). Assim, não é somente palco de trocas de conhecimento e de relações harmoniosas, mas também de conflito e de poder, no qual se faz valer as discrepâncias sócio-econômicas e ainda predomina a desigualdade no acesso às informações. Nesse, sentido, vimos que o mundo cyberpunk idealizado por Gibson, no qual há a divisão “entre os muito ricos, que dispõem de acesso fácil à comunicação instantânea universal, e os muitos pobres [...], que lutam nos subterrâneos por esse acesso.” (FERNANDES, ANO, p.27) não está tão longe de nós.
Assim, entendemos que “A internet não é um instrumento de liberdade, nem tampouco a arma de uma dominação unilateral”. (CASTELLS, 2005, p. 135). A web não é heroína, nem vilã. Ela é, uma ferramenta isenta de valores que pode ser apropriada com as mais diversas intenções. Dessa forma, o ciberespaço é campo de batalha e de reconhecimento e interação das coletividades. É fronteira econômica e cultural e local de expressão democrática da diversidade humana. É produtor de cyborgs e de homens. É promotor de um tempo presente extasiante e contraditório. Sussurra para nós profecias de futuros indecifráveis.


Notas
1. Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET)/História/UFS. Integrante do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET). E-mail: natalia@getempo.orgEste endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. . Orientador: Prof. Dr. Dilton Cândido Santos Maynard.

Referências Bibliográficas

CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre Internet, Negócios e Sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges; revisão de Paulo Vaz. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2003.
FERNANDES, Fábio. A construção do imaginário cyber: William Gibson, criador da cibercultura. São Paulo: Anhembi Morumbi, 2006
GIBSON, William. Neuromancer. São Paulo: Editora Aleph, 2008.
JOHNNY Mnemonic. Direção: Robert Longo. Roteiro: William Gibson. Elenco: Keanu Reeves, Dina Meyer, Dolph Lundgren, Takeshi Kitano, Ice-T, Henry Rollins, Barbara Sukowa e Udo Kier. EUA/Canadá, 1995. 98 min, son, color.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: editora 34, 1999
LINCOLN, Ben.Cyberpunk on screen - William Gibson speaks. In: The Peak, issue 7, vol 100, october 19, 1998. Disponível em: http://www.peak.sfu.ca/the-peak/98-3/issue7/gibson.html. Acesso em 07 de outubro de 2010.
NAPLETON, Steve. The Death of Cyberpunk and the Displacement of Digital Anxieties. In: NAPLETON, Steve, Johnny Mnemonic: Cyberspace and the Displacement of Digital Anxiety in Hollywood Cinema. Dissertation BFI/Birkbeck MA in Cinema and Television Studies, 1996. Disponível em: http://services.exeter.ac.uk/cmit/media/texts/napleton1996/Contents.HTM . Acesso em 07 de outubro de 2010.
ROSSINI, Miriam de Souza. O Lugar do Audiovisual no Fazer Histórico: Uma Discussão Sobre Outras Possibilidades do Fazer Histórico. LOPES, Antônio Herculano, PESAVENTO, Sandra Jatahy, VELLOSO, Mônica Pimenta (orgs.). História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7letras, 2006.




DAMASCENO, Natália. Johnny Mnemonic ou “A maldita civilização tecnológica”. Revista Eletrônica Boletim do TEMPO, Ano 5, Nº30, Rio, 2010 [ISSN 1981-3384]

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